11 de dezembro de 2011

We can all be free

Nada nesta casa me pertence. Aqui não há nada que seja meu. E nem deve haver, já que eu vou e o mundo fica. O meu corpo fica. Tudo fica. O que eu sei fica. E isto tem que me libertar, não me aprisionar. A minha vida não me fez refém, me fez livre para encarar o mundo com  a coragem de quem não tem nada a perder.

10 de dezembro de 2011

Espelho quebrado

No livro de Oscar Wilde, o jovem Dorian, atormentado pela realidade fatalmente perecível de sua juventude e beleza, sofre um tipo de encantamento narcisíco diante de seu retrato pintado em perfeição perene. O intenso desejo de trocar de lugar com o retrato, transferindo para a tela a degradação do seu corpo e trazendo para si a eternidade da representação, faz do retrato de Dorian Gray o mais mágico dos espelhos, e “já que lhe revelara o próprio corpo, revelaria também a própria alma”.
O desejo quase generalizado pela juventude e beleza criou uma espécie de “complexo de Dorian Gray” nas sociedades contemporâneas ocidentais. Porém, diferente do que acontece na obra de Wilde, nem mesmo aos retratos é permitido vacilar. A representação de si também deve ser asséptica, sem nenhum tipo de manchas. Por isso, diferente de Dorian Gray, não temos retrato algum para carregar as nossas vergonhas, e se tivéssemos certamente também não o ostentaríamos sobre móveis, nas paredes ou nos ecrãs, nós o esconderíamos como também fez o jovem Dorian. O compromisso com a perfeição nos faz esconder no quarto escuro, num lugar que se pretende inacessível, as rugosidades do corpo e da alma. 

Cindy Sherman, UNTITLED #360, 2000, COLOR PHOTOGRAPH,  76,2 X 50,8 CM

28 de novembro de 2011

Sobre identidades - Entrevista

O Popular, Domingo, 27 de Novembro de 2011.
Foi publicada ontem no jornal O Popular, Goiás, Brasil, a entrevista que concedi ao jornalista Rogério Borges para uma reportagem que aborda comportamento e identidades a partir do filme "A pele que habito", de Almodóvar. Assisti ao filme logo que entrou em cartaz aqui nas salas de cinema de Braga e saí da sessão cheia de inquietações, então esta foi uma boa oportunidade para retomar as ressonâncias do filme. Infelizmente a reportagem na versão online somente pode ser lida na íntegra por quem é assinante do jornal, mas a entrevista disponibilizo logo abaixo para quem se interessar:


RB - Dentro da cultura visual, como se trabalha o conceito de identidade? Ele é possível em um campo tão dinâmico?
AS - A discussão sobre a identidade é transdisciplinar, como, aliás, é o próprio campo da cultura visual. O conceito de identidade é complexo e fluido, sobretudo na contemporaneidade, e desde a década de 1990 é extensamente discutido pelos teóricos das ciências sociais, e também das ciências psi. O que a atual conjuntura social nos leva a debater, num ambiente instável que tem a sua paisagem desestruturada e fragmentada pelo contínuo e profundo estado de mudança da esfera cultural e tecnológica, isso em termos globais, é justamente a impossibilidade de um sujeito integral, fixo, estável e coerente, segundo as normas sociais hegemônicas, dos gêneros, das sexualidades, das etnias e das classes sociais. Ou seja, dos elementos-chave que compõem as identidades. E é este cenário, um tanto caótico, que instaura a chamada “crise de identidade”, e há quem fale mesmo de um “colapso das identidades”. Daí a impossibilidade de se falar de uma identidade, discutimos as identidades no plural. Os indivíduos têm hoje as suas identidades fragmentadas, multifacetadas e, muitas vezes “incoerentes”.

RB - Vivemos um mundo absolutamente visual, com um número incrível de informações que nos chegam o tempo todo, ininterruptamente. Como formar uma identidade em um turbilhão desses?
AS - A palavra identidade pressupõe a ideia de identificação, ou seja, identificar-se e ser identificado, inclusive ou sobretudo, visualmente. As identidades são construídas a partir de discursos verbais e visuais que nos “recrutam” como sujeitos, ou seja, a partir de aspectos culturais que partilhamos e com os quais nos identificamos, ou somos levados a nos identificar, pelo valor simbólico que carregam cultural e socialmente. Mas a identidade é construída também a partir da diferença, assim eu também me identifico pelo que eu não sou, ou pelo que eu não quero parecer ser. E isto definimos a partir da nossa experiência de vida e da nossa relação com o outro, com o mundo e com as coisas do mundo. O que acontece é que na contemporaneidade, com a revolução tecno-cultural que vivemos, há uma mudança muito rápida e contínua das nossas referências e do que parece prestigioso. Os nossos ícones culturais são instáveis, e são, eles mesmos, mutantes. Talvez a célebre frase de Marx de que “tudo que é sólido se desmancha no ar” nunca tenha calhado tão bem. De fato, hoje a imagem é rainha, o visível e o aparente parecem ser soberanos, têm uma dimensão singular e muito grande na cultura atual. Quando interagimos virtualmente somos primeiro imagem, somos uma foto de perfil nas redes sociais, um avatar, etc. Quando chegamos a um lugar, somos uma imagem corporal cheia de significados que carregamos na roupa, no corte de cabelo, nos adereços, etc. Construímos, portanto, as nossas identidades a partir também do que consumimos em termos materiais e subjetivos, como um mosaico, uma bricolagem. E hoje há uma gama infindável de possibilidades e discursos que podem nos recrutar.

RB - As redes sociais parecem subverter noções identitárias, já que grupos se misturam, perfis falsos são criados, há uma volatilidade grande em como as pessoas se apresentam às outras. Qual a sua opinião sobre essas ferramentas de interação no que tange à identidade?
AS - Há uma intencionalidade no modo como construímos as nossas identidades e exprimimo-nos nos diferentes ambientes sociais em que transitamos on e offline. E, entretanto, há a subjetividade de quem interage conosco, por isso é um movimento de mão dupla. O que penso é que pode haver, por um lado, uma tentativa de construir um continuum na vida online do que é a vida offline, e por outro lado, uma transgressão, em maior ou em menor medida, que pode ir desde criar um perfil totalmente fake nas redes sociais e que possibilite ao indivíduo se expressar e se relacionar de uma maneira completamente diferente do que ele costuma fazer na vida offline, até simplesmente ocultar ou ficcionalizar algumas das suas informações pessoais. O que não rompe necessariamente com o nosso comportamento offline, pois dependendo do ambiente em que nos encontramos, nos comportamos de uma ou outra maneira. Ou seja, trocamos de papel constantemente no teatro da vida cotidiana. Usamos uma ou outra máscara social de acordo com o que nos convém. E podemos fazer isso também nas redes sociais. De repente, numa determinada comunidade virtual, uma pessoa se sente livre, devido à possibilidade de anonimato, para manifestar a sua homofobia sem ser contestada ou recriminada pelo grupo social do qual participa no mundo “real”. Contudo, não creio que haja, nas redes sociais, uma subversão identitária discrepante do que há no mundo offline, apenas a virtualidade nos oferece outras ferramentas, mais amplas e plurais.

RB - Há algo que pode ser considerado idêntico a outro? Uma identidade absoluta é possível na contemporaneidade?
AS - Eu não consigo imaginar o que seria uma identidade absoluta. Concordo com os autores que acreditam que as identidades hoje são obras em constante e infindável reconfiguração, reconstrução. E quando falamos em construir, revelamos o caráter artificial das identidades para desestabilizar o discurso naturalizante dos corpos, dos gêneros, das sexualidades, das etnias, etc. Ou seja, tiramos a base do que poderia conferir algum tipo de estabilidade que legitimaria a fixidez e rigidez que uma suposta “identidade absoluta” precisaria para existir.

RB - Quanto a ter uma identidade, as pessoas estão mais livres ou mais inseguras em suas escolhas?
AS - Creio que a liberdade gera insegurança, no sentido de que, se temos possibilidades plurais, logo  temos mais elementos aos quais podemos recorrer para construir as nossas identidades. Mas isso não parece ser um problema na medida em que as identidades são constantemente reinventadas. Assim, estou habilitado para reconfigurar-me. E isso talvez seja o que cause certo embaralhamento.

RB - O filme de Almodóvar debate a permanência ou não de uma identidade mesmo quando o que é aparente na pessoa muda radicalmente. Qual a sua opinião sobre isso?
AS - “A pele que habito” é provocante porque aponta, numa perspectiva, para os dualismos e binariedades clássicas das idéias naturalizantes do corpo, dos gêneros e das sexualidades: interior/ exterior, corpo/ alma, masculino/ feminino, beleza/ mostruosidade, mas ao mesmo tempo fragiliza estas noções, quando revela a artificialidade desses dualismos com a possibilidade de uma total reconstrução material e subjetiva. O filme de Almodóvar enfatiza a reconstrução material do corpo, daquilo que é visível, e nos faz pensar num corpo que aprisiona. No entanto, os aspectos subjetivos são materializáveis, por exemplo, no modo de andar e numa gestualidade “delicada”, tipicamente “feminina”, que não é natural, mas que se aprende culturalmente. O corpo é a maneira de atestar a nossa presença in loco, é a nossa forma de participar no mundo, por isso as mudanças e transformações corporais ganham tamanha notoriedade na nossa cultura: mutatis mutandis, ou muda-se o que precisa ser mudado para que o impacto da nossa presença seja o que desejamos, de acordo com o que conforma as nossas idiossincrasias. É o que leva uma jovem de 22 anos a injetar botox nos lábios para ficar parecida com a Jéssica Rabbit, ou colocar silicone nos seios, ou tingir os cabelos, ou tirar algumas costelas para ficar com a  cintura mais fina, ou ir à academia de ginástica, ou fazer uma tatuagem, ou consumir drogas para emagracer, etc. Da mais drástica até a  mais sutil prática, estamos falando de body modification, ou de estratégias que partem de um desejo que é subjetivo e que surge a partir de aspectos culturais que são partilhados, mas que se materializam no corpo.
É claro que o filme tem um interesse narrativo que trespassa estas discussões, é uma obra ficcional com uma assinatura autoral, mas nos desperta este tipo de reflexão de uma maneira inquietante, e nos faz mesmo questionar sobre a pele que habitamos ou sob a qual nos abrigamos. Até que ponto esta pele nos aprisiona ou nos liberta, ou nos deixa confortáveis?

RB - Fui informado que você também trabalha questões relacionadas a transexuais. Nesses casos, como é lidar com uma identidade quando o gênero muda? Como se dá essa transição?
AS - A experiência que “A pele que habito” nos mostra é inversa a algumas experiências transexuais. No filme, um jovem homem tem, involuntariamente, o seu corpo transformado num corpo de mulher, e este corpo o aprisiona. Na experiência transexual, o movimento é contrário, seria uma mulher que nasce aprisionada num corpo masculino ou um homem que nasce aprisionado num corpo feminino, e em muitos casos, os sujeitos transexuais sentem a necessidade de estabelecer uma coerência entre a identidade de gênero e a anatomia corporal. A idéia de gênero em si é uma construção cultural, não há nada de natural na noção de gênero, ou de masculino e feminino. Não há nada na natureza que diga que uma mulher deve sentar-se no vaso sanitário quando precisa aliviar as suas urgências, ou que diga o tipo de roupa ou o corte de cabelo que uma mulher deva usar para ser reconhecida socialmente como mulher. Assim, uma mulher reconstrói e reafirma diariamente a sua identidade de gênero feminina quando usa uma saia, quando passa um batom, ou incorpora qualquer elemento que seja reconhecidamente "feminino". Então o movimento que os sujeitos transgêneros fazem é de reformulação, reconfiguração do gênero, do masculino para o feminino ou do feminino para o masculino, utilizando-se dos mesmos artifícios materiais e simbólicos disponíveis em nossa cultura.


24 de novembro de 2011

pequeno (des)encontro amoroso


por uma lírica fotográfica

Foto do Mercat els Encants Vells

Ele uma casa
Ela uma bicicleta
Ele preto no branco
Ela amarela
Ele rema
Ela rima
Mas os olhos brilham quando o beijo estala.


22 de novembro de 2011

Encantos, Encants

Foto de Alessandro Rebel ©  
O Mercat Els Encants Vells é, sem dúvidas, o lugar mais marcante de Barcelona para mim. Mas que tipo de gente, afinal, diz isto de uma feira de velharias de procedência duvidosa e “sem valor”? Um tipo de gente que vê nestas velharias pequenos tesouros de valor inestimável, especialmente nas fotografias.
O Encants marcou-me, particularmente, porque assinalou e aprofundou alguns vincos e interesses que ali, naquele momento, ganharam uma aura de descoberta. Foi somente depois que eu percebi que o interesse por fotografias antigas já era algo latente em mim, e que estava apenas à espera de uma oportunidade para manifestar-se. E manifestou-se lá afetivamente, como um encantamento. Ora, e como poderia ser diferente, se estas fotografias tem o poder de materializar memórias de um tempo e um espaço que não nos pertence, e se estas memórias, que não são nossas, são, antes de tudo, memórias afetivas?
Foi lá, creio eu, que resolvi também assumir a fotografia, e as suas narrativas “vulgares”, como objeto de estudo. Mas a coisa ainda não estava clara.
Ler as dedicatórias nas fotografias e postais, os relatos de férias malsucedidas (Queridas hermanas, aquí hace mucho frío y lluvia... no hemos podido ir ningún día a la Piscina... con eso frío de miedo el “moreno” se me va...), ver as imagens. Tudo parecia-me incrivelmente fantástico, mágico. Sentia-me como uma caçadora de relíquias esquecidas no tempo, entre  páginas amareladas de livros e o bolor de malas e gavetas.

Foto de Alessandro Rebel © 
Foto de Alessandro Rebel © 
Quando voltei à Barcelona, já com algumas coisas mais claras, esperava ansiosamente pelo momento de voltar ao Encants. Lembro-me que quando lá cheguei o bafo quente do verão, em seu último suspiro, fez-me pensar no inferno, mas logo pensei que aquilo poderia ser também um canto menos nobre do céu (e quiça mais interessante), cheio de histórias, de pecadinhos perdóaveis e misérias suportáveis. Desta vez, fui com objetividade, estava em busca de retratos fotográficos com características específicas. Mas não tem jeito, alguns lugares nos tomam, nos possuem. Rapidamente toda a minha objetividade se perdeu,  junto com o meu olhar, logo no primeiro monte de fotografias. A objetividade deu lugar à afetividade. Será que a minha tese tem chances de sair?

Mercado de pulgas

Seguindo a Gran Via de Les Corts Catalanes, ao lado da Plaça de Les Glòries Catalanes, entre a Sagrada Família e a Torre Agbar, está o Mercat Els Encants. Este mercado de pulgas não está no roteiro turístico “oficial”, e eu tive a sorte de o conhecer através de um amigo, o Alessandro Rebel.
Nos Encants, encontra-se todo tipo de objetos curiosos, antigos e novos. Caixas de música, câmeras fotográficas antigas, discos de vinil, selos, ímãs, fotografias pessoais, carimbos, cartões postais, brinquedos, ferramentas, roupas, sapatos, buginganas sem utilidades, outras que podem ser incrivelmente úteis... O Encants está aberto, a partir das 8h30, todas as segundas, quartas, sextas e sábados (menos se for dia de La Mercé). Os comerciantes já começam a se retirar por volta do meio dia, e como aquilo é uma imensidão, vale a pena chegar mais cedo. Registrar imagens do mercado não é recomendado, mas regatear sim, e é inclusive esperado! 






16 de novembro de 2011

O retrato e o teatro do eu


« Retratos são mentirosos. Portanto, de agrado público. Não há quem não se engane em poses e artifícios na certeza que a imagem – revelada e fixada pelos séculos, amém – nada mostrará da alma. Nem de pensamentos íntimos. Ou segredos, atitudes. Vício desabonador capaz de estragar a pose, transformá-la em nódoa. Diante do retratista, todo mundo se alvoroça. Capricha na vestimenta, incrementa os acessórios, arma o sorriso honesto de quem, nunca, nesta vida, chafurdou no pecado. Pelas graças do bom Deus, um retrato absolve, só registra a aparência. Inventasse o retratista um medonho equipamento capaz de imiscuir-se no avesso das pessoas, ninguém, tão alegremente, exporia seus fracassos. » 
 Ângela Dutra de Menezes
O avesso do retrato, 1999
Erving Goffman no célebre texto “A apresentação do eu na vida de todos os dias”, aborda o comportamento humano em situações sociais a partir da metáfora da teatralização da vida, conferindo ao indivíduo dois papéis fundamentais: como ator, fabricante de impressões, envolvido na tarefa de encenar uma representação; e como personagem, uma figura representada que tem como finalidade evocar admiração pelas suas qualidades. 
As representações do eu configuram-se como uma mise en scène, na qual a partir de uma gama de ações, expressões, símbolos verbais e visuais o indivíduo disponibiliza informações sobre si, causando certa impressão – ainda que não plenamente correspondente com a “realidade”.
Esta metáfora de Goffman aplica-se também ao ato fotográfico de fazer-se imagem. O retrato fotográfico é uma representação de si. Deixar-se fotografar é dar-se a ver, é encenar para os olhos do outro, com mais ou menos espontaneidade. 
Dirigir-se diante da câmera e deixar-se fotografar conscientemente – decidindo pose, expressão facial, vestimenta, ambientação  é encenar, é representar a si mesmo,  posicionando-se para que a imagem passe a ideia de quem se é, ou de quem se quer parecer ser: “Ora, a partir do momento que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponho-me a ‘posar’, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem” (Barthes, 1984). E nesta imagem, o que queremos é (quase sempre) mostrar a melhor máscara social, a mais prestigiosa e admirável.

*Barthes, Roland (1984) A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
**Goffman, Erving (1993) A apresentação do eu na vida de todos os dias. Lisboa: Relógio D'água.




14 de novembro de 2011

O punctum e um sorriso que flecha


Ao falar do seu espanto diante da fotografia na qual vê « os olhos que viram o Imperador », Barthes revela o seu incômodo interesse e atração diante de certas imagens fotográficas, declarando a sua angústia em querer « uma história dos olhares », fundamentada, sobretudo, no interesse particular de quem olha. O autor coloca-se, então, diante das fotografias com olhar desarmado para observar, refletir, interpretar e quem sabe desvendar o que está aquém e além da imagem.
     Com alguma frequência tenho vivido, eu própria, este tipo de atração inexplicável por certas fotografias. Refiro-me aqui precisamente a este interesse que « punge e mortifica », como caracterizou Barthes.
A minha mais recente obsessão trata-se, particularmente, de uma fotografia encontrada no Museu da Imagem de Braga, durante uma de minhas expedições em busca de tesouros perdidos nos baús do tempo. Em meio a uma série com pouco mais de uma dúzia de fotografias, um sorriso fisgou-me o olhar – seria o que Barthes chama de punctum.
Esta série de fotografias retrata cenas de um casamento vulgar. Em um dia qualquer entre os finais dos anos de 1960 e os primeiros anos de 1970, numa igreja qualquer dos arredores de Braga, um jovem casal celebra o matrimônio. A noiva (de sorriso meio ausente) não era uma princesa. O noivo não veio num cavalo branco. Os convidados não eram ilustres. O carro que levou os noivos não era uma limousine. A casa na qual viveriam não era um castelo. O cenário é campestre, rústico, sem pompa. A cena é humilde.
É esse o aspecto visual capaz de despertar o interesse geral e diversificado sobre esta imagem. Ou seja, o que Barthes nomeia de studium, e que provém de um investimento consciente para situar informações históricas e culturais que nos habilitem a interpretar e contextualizar a imagem, sentindo-nos comovidos ou não por esta: « Gosto. Não gosto ».
A minha comoção afetiva por esta narrativa deu-se pelo conjunto como um todo. E esta comoção não vem da admiração pela estética das fotos, ou de um interesse antropológico pelo assunto retratado, ou do ineditismo do olhar do fotógrafo sobre este tipo de evento. O que me sequestra, é o ar de celebração que deixa muito evidente um esforço para adequar-se a padrões rituais dominantes, e ao mesmo tempo uma ambientação muito familiar, ordinária, que apenas ensaiava a formalidade destas cerimônias.  « Gosto ».
Dentre o conjunto de clichês, senti-me particularmente interessada por uma foto, por um sorriso.  Mas por quê? De tanto observar, percebi que o que fisgava-me naquele sorriso  comungava com um olhar que não parecia exatamente sorrir. Era algo entre o amor e a compaixão que o pai dirigia à filha, a jovem Sra. Fulana de Tal.
            O que sei desta foto é o que vejo. Entre a ficção e a realidade, construo o meu relato. Não fiz sobre este conjunto de clichês qualquer pesquisa aprofundada, não o analisei formalmente, não esmiucei em grelhas os pormenores. Mas foi de tanto olhar que entendi « o meu espanto diante dos olhos que sabem o porque daquele sorriso ».






 * Barthes, Roland (1984) A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

9 de novembro de 2011

O fabuloso Photomaton


«Attention, le petit oiseau va sortir!»


De uma cabine fotográfica onde o retratado insere uma moeda e recebe automaticamente os seus retratos, nasce o Photomaton, um mecanismo fotográfico simples, barato, confiável e sem qualquer pretensão estética.
Retrato que tem como foco o rosto, o Photomaton logo criou um tipo de representação que se tornou padrão para as fotografias de identificação.
Esta adorável cabine fotográfica, que já fez sucesso no cinema em O fabuloso destino de Amélie Poulain, foi desenvolvido em Nova Iorque em 1926, e até hoje mantém o seu charme com uma tendência estética vintage.


O Photomaton representa um importante marco para a história do retrato fotográfico, pois assinala a popularização vindoura dos dispositivos fotográficos automáticos. Com o Photomaton, o retrato inaugura um novo regime do olhar, libertando o retratado do olhar assimétrico do fotógrafo. Dentro da cabine, o indivíduo está isolado e tem, por isso, privacidade para ignorar inclusive as instruções da máquina em relação à pose (Attention! Tournez la tetê à droite, fixez la croix au-dessus du miroir... et souriez!), e se colocar ante a objetiva como bem entender. 
Nos retratos Photomaton, geralmente tirados sozinho ou em dupla, figuram indivíduos que se expressam mais à vontade diante do dispositivo fotográfico, menos rígidos em relação à pose, à vestimenta, à gestualidade. Da mesma forma, o interior da estreita cabine e o seu fundo monocromático aliviam a carga social que tinha o estúdio e o ato de tomada da foto - como nos tempos do carte de visite, por exemplo.
Nesse momento, o retrato se aproxima ainda mais da idéia de auto-retrato, pois livre do olhar do fotógrafo, cabe tão somente ao indivíduo, em sua idiossincrasia, constituir uma auto-representação diante da objetiva.
As possibilidades criativas despertadas dentro desta cabine, que tem inegavelmente qualquer coisa de mágico, também foram celebradas por muitas artistas, como André BretonEm 2011, Raynal Pellicer lançou um livro* que conta a história do Photomaton e aborda os seus usos sociais, inclusive no campo da arte contemporânea.
E para quem ficou com vontade de se aventurar dentro de uma destas cabines, eis aqui uma graciosa versão digital: photocabine.com

E, é claro, há também quem guarde os seus traumas destes autômatos...



*Pellicer, Raynal (2011) Photomaton. Paris: Édtitions La Martinière.






O dispositivo-Medusa e o duplo exterior de Narciso

Narciso, Caravaggio, 1594.
Óleo sobre tela
Jogo de olhares, a fotografia encontra em Narciso e Medusa os seus mitos de origem, como bem sugere Philippe Dubois.  
Armada em riste como um dedo indicador, a câmera fotográfica desafia e lança, num disparo, o olhar petrificante da Medusa, que transforma em objeto o sujeito, e congela na representação a expressão. Eis agora, no retrato fotográfico, o sujeito feito estátua, vazio de si como uma sombra ou um reflexo.
Com o dispositivo-Medusa, o desejo narcísico de representação consuma-se na afirmação de um duplo exterior. No mito de Narciso, o seu reflexo o duplica e torna-se uma “imagem de si”, que é também a imagem do corpo, “lugar de investimento da vaidade do sujeito e de investimentos emocionais”[1]Enquanto o reflexo de Narciso remete a um duplo exterior do sujeito, o olhar de Medusa transforma o sujeito em objeto de representação, tornando presente a sua ausência, agora como estátua.
Quantas vezes não nos fazemos estátuas, colocando-nos espontaneamente diante deste dispositivo-Medusa para construir o nosso duplo exterior? Já desde o daguerreótipo, o retrato é o gênero de fotografia mais produzido. Aliás, desde as cavernas de Lascaux o homem demonstra esta necessidade e desejo de representação, e vem aprimorando o seu jogo de sombras, reflexos e olhares.
E é por ilustrar tão bem este jogo, que não me parecia ser possível encontrar melhor metáfora para falar sobre fotografia em geral, mas particularmente sobre retrato fotográfico e  sobre (auto)representações. Por isso, o blogue chama-se Narcisos e Medusas, mas por aqui também estarão outros mitos, referências, personagens e narrativas reais e ficcionais.  
Medusa, Caravaggio, 1596.
Pintura na madeira


[1] Medeiros, Margarida (2000) Fotografia e Narcisismo. Lisboa: Assírio & Alvim.
Dubois, Philippe (1993) O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas, São Paulo: Papirus.