15 de dezembro de 2012

no portrait available


Se o mundo fosse mesmo acabar em 2012, como dizem as profecias apocalípticas, e somente nos fosse possível deixar um único retrato como vestígio da aparência daquilo que foi o “ser humano”, uma síntese da nossa figura, que imagem escolheríamos? Qual é a imagem que lhe vem à cabeça quando pensa no “ser humano”?
Esta pergunta surgiu-me ao ver o livro de Portraits do fotógrafo americano Steve McCurry e observar a diversidade visual humana. Retomando Aristóteles, Ortega y Gasset diz que as coisas diferentes se diferenciam justamente por aquilo em que se assemelham, ou seja, por uma dada característica comum. “É porque os corpos têm todos cor que notamos que um tem uma cor diferente dos outros”. Mas para perceber a diferença é preciso ver os diferentes corpos. E porque é arbitrário estar sempre a mostrar as mesmas narrativas e os mesmos tipos como se fossem universais; e porque seria arbitrário escolher uma única imagem que tentasse abranger toda a diversidade humana, que eu não deixaria retrato nenhum. E que o resto do universo ficasse a especular que nós tínhamos penas, cauda, uma cabeça mínima, um polegar opositor e apenas mais outro dedo.

Marseilles, France
Bamiyan, Afghanistan
Omo Valley, Ethiopia
Chiang Mai, Thailand
Los Angeles, California, USA
Lake Chad, Chad





22 de novembro de 2012

diálogos


Eu sou melhor que você | Moreno Veloso 



Todo mundo acha que pode, acha que é pop, acha que é poeta.
 Todo mundo tem razão e vence sempre na hora certa.
 Todo mundo prova sempre pra si mesmo que não há derrota.
 Todo homem tem voz grossa e tem pau grande. 
E é maior do que o meu, do que o seu, do que o do Pedro Sá
. Todo mundo é referência e se compara só pra ver que é melhor. 
Todo mundo é mais bonito do que eu, mas eu sou mais que todos.
 Todo mundo tem suingue, é feliz, é forte e sabe sambar.
 Todos querem mas não podem admitir a coexistência do orgulho e do amor porque:
 Eu sou melhor que você. Boa viagem.
 Eu sou melhor que você, mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém.Todo mundo diz que sabe, e quando diz que não sabe é porque 
é charmoso não saber algo que todas as pessoas já sabem como é.
 Todo mundo é especial, é original, é o que todos queriam ser.
 Não basta ser inteligente, tem que ser mais do que o outro pra ele te reconhecer.
 Todo mundo ganha grana pra dizer que ela não vale nada.
 Todo mundo diz que é contra a violência e sempre dá porrada. 
Todos querem se apaixonar sem se arriscar, nem se expor e nem sofrer.
 Todas querem vida fácil sem ser puta e com reputação. Se reprimem e começam a dizer:
 Eu sou melhor que você.
 Eu sou melhor que você, mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém!

Cinema Americano | Thaís Gulin


Tão homem tão bruto tão coca-cola nego tão rockn'roll. Tão bomba atômica tão amedrontado tão burro tão desesperado. Tão raiva tão guerra tanto comando e adeus Tão jeans tão centro tão cabeceira tão Deus.  Tão indústria tão nosso tão falso tão Papai Noel.  Tão Oscar tão triste tão chato tão homem Nobel.  Tão hot dog tão câncer social tão narciso.  Tão quadrado tão fundamental.  Tão bom tão lindo tão livre tão Nova York.  Tão grana tão macho tão western tão Ibope.  Racistas paternalistas acionistas.  Prefiro os nossos sambistas.  A ponte de safena Hollywood e o sucesso.  O cinema a Casa Branca a frigideira e o sucesso.  A Barra da Tijuca Hollywood e o sucesso. Prefiro os nossos sambistas.  Prefiro o poeta pálido anti-homem que ri e que chora.  Que lê Rimbaud, Verlaine, que é frágil e que te adora.  Que entende o triunfo da poesia sobre o futebol.  Mas que joga sua pelada todo domingo debaixo do sol. Prefere ao invés de Slayer ouvir Caetano ouvir Mano Chao. Não que Slayer não seja legal e visceral.  A expressão do desespero do macho americano é normal. É preciso mais que um soco pra se fazer um som um homem um filmeEsse medo da face fêmea dita por Cristo é natural.  É preciso seu amor seu feminino seu suíngue.  Pra ser bom de cama é preciso muito mais do que um pau grande.  É preciso ser macho ser fêmea ser elegante. Prefiro os nossos sambistas.





15 de novembro de 2012

always on my mind


Que a fotografia é uma manipulação da realidade material, isto os teóricos e críticos já o disseram. Contudo, esta realidade forjada pode atender, em certas ocasiões, a um desejo de externalizar emoções realmente sinceras e tornar visíveis os sentimentos, evidenciando-os visualmente.
É bem verdade também que os sentimentos já nos dão certas pistas visuais. A paixão, por exemplo, deixa visíveis os seus sinais, independentemente da engenhosidade fotográfica. Ora, se na semiótica médica, pele e olhos amarelados revelam-se sinais de icterícia, na “semiótica do amor”, o brilho nos olhos e o ar aluado são sinais de que o sujeito foi acometido pela paixão... Mas tais sinais, para o ser apaixonado, podem não ser suficientes. Há quem queira representar de forma veemente a paixão, eternizar a imagem do sentimento amoroso e a devoção ao ser amado. E eis que a fotografia, com técnicas das mais primitivas às mais sofisticadas, é capaz de tornar figurativo aquilo que é abstrato. E aí está uma bela fotografia que ilustra bem o amor, porque o essencial pode ser visível aos olhos.


Arquivo Aliança © Museu da Imagem | C.M.B

*** Eu sei que aqueles que me conhecem vão dizer que este blog está a se tornar um lugar muito romântico, e que isto não combina nada, nada comigo. Em minha defesa, só tenho a dizer que o amor é assunto sério. Das ciências médicas à poética das ciências, o amor é um assunto seríssimo!




9 de novembro de 2012

o amor mediado


"Ça te dit de faire l'amour sous la neige?"

Ao ler o “Livro do Amor”, da psicanalista Regina Navarro, no qual são apresentadas as modificações nas vivências do sexo e do amor, desde a pré-história até a atualidade, deparo-me, sobretudo a partir do século XIX, com a presença frequente de um ou outro meio técnico de comunicação a mediar as relações amorosas. E da mesma forma como as mentalidades sobre o sentimento amoroso experimentaram mudanças ao longo da história da humanidade, também mudaram os modos de interação dos apaixonados.
A segunda revolução industrial trouxe mudanças práticas, mas também subjectivas para a vida quotidiana. O advento e rápido desenvolvimento dos meios técnicos de comunicação e dos sistemas de transporte foram fatores que interferiram nas formas de expressar o amor, alterando progressivamente os fluxos e dinâmicas dos relacionamentos sociais e também das interações amorosas: com os correios dinamizou-se a troca de mensagens românticas, os encontros marcados, os envios de retratos com dedicatórias, cartas e postais de amor; com a popularização do telefone foi possível levar a voz do ser amado para pertinho do travesseiro (por que não toca o telefone?); o automóvel servia de ninho do amor, “um pecado sobre rodas”; o escurinho das salas de cinema, ambientado pelos beijos, lágrimas e juras de amor eterno do cinema Hollywoodiano, servia de palco para as cálidas carícias dos namorados; hoje, os mais expressivos meios de interação encontram-se nos ambientes virtuais, como e-mails, chats, facebook, twitter, skype, etc. Desde os últimos anos do século XX, muitos foram os casos de amor que começaram, avançaram ou terminaram no ciberespaço. 
O amor é tecnicamente mediado, das longas cartas românticas aos 160 caracteres do SMS. E se as cartas de amor estão vincadas no imaginário romântico do século XIX até meados do século XX (dos filósofos aos generais, das ingénuas jovens burguesas às meretrizes, não há personagem real ou ficcional que não tenha escrito uma – ridícula – carta de amor), no século XXI, a revolução tecnológica digital nos abre novas possibilidades para a vivência amorosa e cria um novo léxico para o amor. 
        
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Carta de Fernando Pessoa à Ophélia:

         Terrivel Bébé

      Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o bebé deve escrever-me sempre, mesmo que eu não escreva, que é  sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque é que a havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telephono hoje, e gostava de lhe dar um beijo na bocca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a bocca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu hombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar, e porque é que a Ophelinha gosta de um meliante e de um cevado e de um javardo e de um indivíduo com ventas de contador de gás e expressão geral de não estar ali mas na pia da casa ao lado, e exactamente, e enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e eu gostava que a Bebé fôsse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despia-a, e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece ser impossível ser escripto por um ente humano, mas é escripto por mim .

Cartas de Amor, Fernando Pessoa. (Organização, posfácio e notas de David Mourão Ferreira. Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz.) Lisboa, Ática, 1978 (3ª ed. 1994)

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The Kiss, 1896 | Thomas Edison