29 de dezembro de 2013

meu dia 11.323




Nasci em 29 de dezembro de 1982, às 18 horas e 15 minutos, numa quinta-feira. Completo 31 anos, mas prefiro pensar que até este momento vivi 11.323 dias. 

No exato momento em que a minha cabeça saía do corpo da minha mãe, outras milhares de pessoas também colocavam a cara no mundo pela primeira vez. Outras milhares de pessoas entravam em seus caixões. E outras milhares nem sequer puderam dar o primeiro choro.

Das milhares e milhares de pessoas que nasceram no mesmo dia que eu, muitas não chegaram ao dia 11.323. Mas eu estou aqui. 

Aos 31 anos, poderia perfeitamente abordar o cliché da mulher balzaquiana, que desabrocha aos 30. Não desabrochei aos 30. Venho desabrochando ao longo destes 11.323 dias.  Não me sinto nem mais bela, madura, inteligente ou interessante do que quando tinha 20 anos. Quando eu tinha 7.940 dias ou 9.036 dias, tinha a beleza, maturidade, inteligência e os predicados dos dias que até então havia vivido, e de como os havia vivido. 

Mas 11.323 dias de vida não foram suficientes para eu me tornar a pessoa extradiornária que até por volta dos dias 6.000 eu pensava poder ser quando aqui chegasse. Aos 11.323 dias de vida, o meu grande feito foi não ter sucumbido. 


Não tenho nenhuma obra ou nada em especial do que me orgulhar. Não tenho nada que me distinga, a não ser aquilo que me faz ser singular: a minha história de vida. As minhas experiências, que são minhas. Só minhas. Que eu vivi. Senti. Chorei. Sorri. Sozinha. Sozinha... Ora, "ninguém nasce o nascimento do outro, nem vive a vida do outro e nem morre a morte do outro"… Não é isso que diz Nietzsche?! O outro está lá, mas sorrindo a sua alegria e chorando o sua dor, por mais intimidade, cumplicidade e empatia que exista.

O tempo, em sua abstração, mas objetivamente organizado em segundos, minutos, dias, semanas, meses e anos, é o que de mais importante se tem na vida. E é pura contingência.

Do momento em que nascemos até o instante da morte, o tempo é uma linha a qual nos agarramos. E esta linha não conta os anos, nem os dias e nem os segundos, é tempo de vida contínuo, que não pára nunca até parar de vez. E também não volta atrás.

Esta linha não é reta e nem propriamente forte. Por vezes é frágil até demais, e escorregadia. Faz curvas, dá nós e laços, balança, quase se rompe. E nós agarrados a ela, equilibrados sobre ela. Às vezes, ébrios, damos saltos… e com os sobressaltos quase caímos. Às vezes, dançamos olhando a lua, na ponta dos pés, e rodopiamos sem nos dar conta de que desafiamos a gravidade. E parece que é quando temos consciência da linha, do tempo e da vida, que nos sentimos mais pesados.

O tempo, sendo a linha que nos permite tecer a vida, é também a própria vida. Com sabedoria, ou sorte, esticamos a linha cada vez mais e mais, sem deixá-la se romper. 

Aos 31 anos, dou-me conta que mais me vale me preocupar em viver os dias do que contar os anos. E ao completar 11.323 dias, não desejo nada mais do que muito mais tempo, muitos mais dias. O que já não é pouco. 

Se aos 11.323 dias sou feliz? E quem não é?! E quem é que é?!

Aline Soares

1 de agosto de 2013

tatuar a vida na cara


Ilustração: Brian Cronin | 25 years and change


Com o passar dos anos, a nossa fisionomia muda. Mas não é só porque envelhecemos, é porque a fisionomia vai sendo moldada pelas histórias e experiências vividas, e pela gravidade da nossa personalidade. 

É como se a vida fosse, dia após dia, tatuada na nossa cara com linhas mais ou menos vincadas,  assim como o sol nos deixa sardas na pele, e as preocupações cabelos brancos.

Outro dia, ao subir o elevador, olhei-me ao espelho e deparei-me com umas tantas histórias na minha cara. Aos trinta anos, o rosto já não é uma folha em branco. 

Lembrei-me logo de uma senhora que conheço e do seu vinco profundo entre as sobrancelhas. Há algum tempo ela tenta se livrar daquelas histórias, mas não há medicina estética que redesenhe a vida ou laser que apague o que foi vivido. 

Para o bem e para o mal, não se pode viver impunemente.


26 de junho de 2013

das lembranças da minha irmã


Sally Illustration 


Naqueles tempos, a minha avó ainda levava a primavera nos seus vestidos floridos e o verão no rouge do rosto. Mas a minha memória de criança só guardou o inverno. 

Sei, de ouvir falar, que ela era muito vívida. Sei também que apesar da vida não lhe sorrir muito, ela sorria. Há quem diga que ela era uma mulher de se admirar: tinha a resistência de um peixe que sobrevive mesmo depois do rio secar, esperando chover novamente. Eu, infelizmente, não me lembro do rio cheio e nem dela nele a nadar. 

Não me lembro dela na cozinha fazendo cocada e nem do frigorífico vermelho. Também não tenho no  meu nariz o cheiro do talco que ela passava no corpo e nem do pó de arroz.

Agora que ela se foi, o meu lamento é de vida. Uma vida que gemia desde 1982. O que ficou na minha memória, à contraluz, foi a imagem da minha avó com uma menina agarrada à mão sumindo no fim da rua, e de um rio que fez curva tentando reter a água durante 30 anos. 


*Em memória da minha avó.



22 de maio de 2013

eu rio

Foto: Porto, 2010 | Aline Soares

eu chovo
eu rio

desanuvio

e o tempo não volta atrás
e nem eu
e nem o rio






19 de maio de 2013

acertar o passo



Num desses dias de flanêrie, sentei-me num banco a observar as pessoas e as ruas. Logo um simpático casal de velhinhos atravessou o meu olhar e fisgou-me a atenção. Mais do que os cabelos brancos, eles tinham em comum o andar: ambos pendiam o corpo para o mesmo lado, ao caminhar eles mancavam da mesma perna. Será que isto devia-se ao facto de terem ajustado os passos, enquanto esforçavam-se por andar lado a lado, ao longo da vida?   
Comecei a observar os demais casais que passavam, sobretudo os idosos. Era curioso ver como a maioria deles havia acertado o passo, mesmo se um dos dois tinha as pernas mais compridas, ou andava com passinhos mais curtos ou mais largos, mais leves ou mais pesados. Pareciam estar a ouvir a mesma música. Teriam eles acabado por se recomporem, entre contratempos e novos compassos, para seguir o mesmo andamento?  No fundo, estar com alguém é isto, é (querer) acertar o passo. Sem acertar o passo, um sempre acabará ficando para trás.  

Foto de Tomasz Lazar


Tiê | Só sei dançar com você